sexta-feira, 15 de março de 2019

Prata da Casa: ourives e oficinas em Tiradentes


O ofício de ourives desde muito tempo em Portugal se dividiu em ourives do ouro e ourives da prata, embora todos trabalhassem ambos os metais. A tradição da ourivesaria portuguesa vem da idade média, como o atesta as jóias da rainha Santa Isabel (1282/1325) até hoje conservadas em museu de Coimbra- Portugal. Os portugueses que colonizaram o Brasil trouxeram o ofício de ourives principalmente do ourives da prata para os grandes centros como a Bahia e o Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII, embora outras regiões tenham produzido artefatos de prata, em menor escala como Pernambuco, São Paulo, Rio Grande do Sul, Goiás e Pará. O povoamento da região dos Campos de Cataguás, com a descoberta de ouro de aluvião, grupiaras e galerias fez com que grandes levas de artífices portugueses tenham aqui aportado e claro entre eles os ourives, embora logo a coroa portuguesa irá proibir o ofício na Capitania de Minas Gerais, o que não é na verdade seguido a risca. Muitos ourives, principalmente da prata, passaram por, viveram e nasceram em Minas, nos séculos XVIII e XIX. Alguns ourives de ouro mantiveram-se em Sabará, Diamantina e Minas Novas com as joias brasileiríssimas de coco e ouro, até os dias atuais.

A exceção de poucos ourives da prata de que se conhece a obra, como Rodrigo Brum e João de Lana, os ourives da prata mineiros dedicaram-se a peças menores, como cordões, medalhas, pingentes, resplendores, coroas, enquanto as grandes peças: tocheiros, lanternas, custódias, turíbulos, bacias e gomís eram feitos em Lisboa, no Rio de Janeiro e na Bahia.

Normalmente as peças de prataria litúrgicas ou domésticas, assim como as joias, produzidas em Minas não tinham marcas, porque com a proibição do ofício de ourives, não havia o ofício de contraste e consequentemente as marcas de toque, de cidade e do ourives, o que torna extremamente difícil identificar a prataria mineira, quando não há documento de compra ou encomenda da peça. Outro problema é o quase total desaparecimento da prataria doméstica e joias praticamente inexistente até nos museus brasileiros.

Na antiga Vila de São José Del Rei, hoje cidade de Tiradentes, vem dos templos imemoráveis o ofício de ourives do ouro e certamente da prata. A primeira notícia de um profissional, data de 1738, quando Antônio Gonçalves Veloso, português da região de Braga, foi identificado como ourives, como consta nos livros das Devassas Eclesiásticas da Diocese de Mariana. Em 1740 o citado Antônio Gonçalves Veloso executa uma cruz de prata para o altar da Irmandade de São Miguel e Almas da matriz de Santo Antônio, peça hoje desaparecida, e em 1770 “se fizeram estrelas no diadema de Nossa Senhora da Piedade”, diadema hoje exposto no Museu da Liturgia. Ainda no século XVIII aparecem dois nomes de ourives da prata trabalhando para a matriz de Santo Antônio, Manoel Carvalho Ferreira (1730) e Antônio Francisco Cortes (1743), mas ambos vivendo na cidade do Rio de Janeiro. 

Durante o século XIX há notícias de vários ourives citados na documentação da câmara, embora não se conheça suas obras. Em 1818, Miguel Barbosa da Silveira trabalha para a irmandade do Santíssimo Sacramento da igreja matriz de Santo Antônio; em 1831 consta no censo da província seis (6) ourives na Vila de São José. No ano de 1835 vamos encontrar os ourives Alexandre Veloso do Carmo, Antônio José Lopes da Cruz, Inácio José Fulgêncio, Francisco José Jacal, José Vieira Lopes, Francisco de Paula, Joaquim José da Silva, Herculano José das Virgens citados nos alistamentos da guarda nacional e livros das irmandades.  Ainda em 1835aparece o nome de Francisco de Assis Veloso, que se casa em 05 de julho de 1849, com Inácia Olinda, na capela do Bom Jesus da Pobreza. Podemos ainda citar no século XVIII (1799) o casamento Francisco Veloso do Carmo e já no século XIX (1845) citar o nome de José Antônio de Almeida.

No final do século XIX parece que se intensificou a produção de objetos de prata na cidade de Tiradentes, pois vamos encontrar muitos ourives em diversas famílias tiradentinas, como  a de  Antônio de Pádua Falcão (1843-1927), a de José Luiz Ramalho (1840-1900) a de Silvestre Ferreira Barbosa (1820-1904) ou na família dos músicos Carlos Augusto de Brites, Martimiano de Brites e Manoel de Brites.

No início do século XX praticamente todas as casas da cidade de Tiradentes tinham, uma pequena “tenda” ou oficina no fundo do quintal ou um cômodo detrás da casa. Seria impossível de citar todos os ourives que trabalharam no século XX em Tiradentes, inclusive as mulheres que “teciam cordões” e limavam as medalhas, cabos e bainhas de facas e outros objetos. Alguns homens mais abastados que montaram “oficinas” como a de Joaquim Ramalho, no porão do sobrado Ramalho (hoje galeria) ou a do meu bisavô Galdino Rocha que construiu um pequeno prédio ao lado de sua casa na rua Direita, hoje número 07, para instalar a oficina em 1921, com direito a monograma na fachada e papel timbrado. Famílias inteiras dedicaram-se ao ofício como a de José Amaro Conceição, cujo filho Vicente Cambota e os netos José Geraldo, Geraldo Conceição (Mitula) e Eros Miguel Conceição foram exímios artesãos. Francisco Cândido Barbosa, morador do Largo do Chafariz, passou o ofício para seus filhos Francisco Barbosa Junior, o Chiquinho do Correio e Cid Barbosa, além dos netos Nilson e Nilberto. Outras muitas famílias poderiam ser citadas como os Dâmaso, como Francisco de Paula Ferreira (Chico Dâmaso) e Vicente Ferreira (Dâmaso), cujos filhos Antônio e José foram ótimos profissionais.

O que se fazia na primeira metade do século XX

A produção principal do fim do século XIX, até os anos 1940-1950 era de cordões para medalhas, medalhas de santos, do Divino Espírito Santo, bainhas de facas, cabos de faca, com figura de mulher, rosários, terços, corrente para relógios, cabo de garfos e eventualmente peças grandes como castiçais e lanternas processionais feitas sob encomenda. A produção era vendida por “viajantes” que levavam as mercadorias para as festas religiosas ou vendida de porta em porta. Grande parte de cordões e medalhas eram vendidos no Jubileu do Bom Jesus de Matozinhos de Congonhas até os anos 1960. No século XX três nomes de oficinas se destacaram. Primeiramente foi a de José Bernardo de Santana, o Pinduca, de conhecida família de ourives e pedreiros do Alto de São Francisco. Pinduca abriu uma oficina com grande produção de obras de prata, empregando muitas pessoas, entre os anos 1940 e 1950, tendo arrebanhado razoável fortuna, que perdeu seja para os impostos, seja para o esbanjamento. Após falido, Pinduca foi morar no estado do Paraná, voltando para Tiradentes no fim de sua vida. Naquela época os ourives compravam os patacões de prata do império e os fundia transformando-os em barras de prata. Na sua volta trouxe alguns patacões. Conta-se que Pinduca chegou a fazer cigarro em notas de mil réis. Como ele mesmo me contou, era ele quem doava os caixões quando morria uma pessoa pobre. Certo dia ele mandou o caixão, um saco de pão e café para um velório, mas alta noite a viúva bateu na sua porta e disse “Senhor Pinduca o senhor já deu o caixão, o café e o pão, mas faltou a cachaça” ao que ele respondeu em sua típica expressão: “vai prá putipariu”. Contou-me com grande gargalhada. O segundo mais importante nome no ramo foi “Sô Chiquinho do Correio” ou Francisco Barbosa Junior que era filho e neto de ourives. Abriu uma oficina “de Ourives Santíssima Trindade” em 1954 nas dependências de sua casa e construiu a primeira loja do gênero, situada na Praça Benedito Valadares nº 40, telefone nº 8, loja ainda existente no atual Largo das Forras. Pela oficina do “Chiquinho do Correio”, passou não só seus filhos, mas também grande parte da massa trabalhadora de Tiradentes, sem contar as mulheres que “teciam” colares em casa, inclusive no Arraial do Bichinho (Vitoriano Veloso). Sô Chiquinho produziu muitos colares, pulseiras, brincos, medalhas, terços, rosas, laços, anéis, objetos de decoração e nunca deixou de produzir as alianças de noivado, em ouro. O terceiro mais importante nome no ramo foi Geraldo Conceição “O Mitula”, filho, neto e irmão de ourives, que nos anos de 1970 abriu uma grande “oficina-fábrica”, construída no Pacu, em substituição a oficina dos fundos de sua casa, na rua da Câmara, antiga rua Herculano Veloso nº 13, existente desde os anos 1950. Ao lado de sua casa “Mitula” mantinha uma loja “Oficina de Ourives São Judas Tadeu”, onde vendia a produção. A construção da oficina com grandes espaços de produção e introdução de máquinas modernas, fez do “Mitula” o maior empreendedor da cidade de Tiradentes e chegou a exportar bijuterias para França, Japão, Austrália, Estados Unidos e Panamá, segundo informa seu jornal “Prata Informativo” de novembro de 1974. O “Mitula” produziu grande quantidade de ramos de rosas decorativas, em alpaca, castiçais tipo rosa, terços de grandes contas, colares, pulseiras, cordões e anéis diversos. Além da oficina, da loja da rua da Câmara, do escritório da rua Bias Fortes, mantinha ainda um restaurante e lanchonete e um clube de lazer no Largo das Forras, hoje hotel Ponta do Morro. Infelizmente faliu e perdeu não só a oficina como todo o patrimônio imobiliário adquirido. Mas “Mitula é sempre lembrado como patrão justo, para todos seus empregados e durante muitos anos distribuiu carros cheios de brinquedos para as crianças pobres da cidade, na véspera do natal.

Neste ano que comemoramos os 300 anos de emancipação política da cidade de Tiradentes, poderíamos citar muitos ourives que conhecemos nesta já não tão curta vida, mas vamos apenas a alguns que se destacaram como o Chico Dâmaso que era especialista em fazer brincos de ouro de “cabacinha”, que todas as mulheres de Tiradentes usavam, além de alianças de casamento; o Laurito Cabral que foi empregado, e depois sócio do “Mitula” e teve sua própria oficina e loja com sucesso. Sua loja se chamava “São Benedito” e localizava-se na rua da Praia (Ministro Gabriel Passos). Outra figura muito querida era nosso amigo Zico (José Gomes de Matos) que ultimamente especializou-se em fazer “bingas”(isqueiros que tirava fogo de pedra) e isqueiros de querosene e rodinha. Zico era uma espécie de “factotum”, tudo era pedido a ele para fazer e consertar. Os filhos de Vicente Dâmaso, Antônio (Cavaco) e o Zé Damas foram cuidadosos artesãos, sendo que o Cavaco era perito em gravar letras e nomes.

Eram muito curiosas as pessoas que andavam pelas ruas fazendo cordões como o Tião da Antonieta, o Cara Preta, ou o Antônio Juanito (Antônio Faustino da Cruz) que passava todo o tempo fazendo colchete de alpaca para pulseiras e cordões. Lembro-me que fez para mim colchetes grandes, para prender no andor, as sanefas do Senhor dos Passos.

Ainda hoje sobrevive a oficina Casa da Prata que pertenceu a Marcos Barbosa, O Dinho, e hoje gerenciado por Rummenigge Zanola Schimidt e Rosemeire Zanola Babosa.

Hoje, mostrando esses instrumentos de trabalho e algumas peças, queremos homenagear todos os anônimos trabalhadores que nesses trezentos anos produziram obras de beleza e tradição artística, assim como os ourives nomeados e conhecidos da população tiradentina. 

Queremos agradecer aqui ao ourives Nilberto Barbosa, o Bebeto, pelo empréstimo das peças e preciosas informações; ao Rubens Lopes da Cruz pelo empréstimo do acervo de seu pai Benigno Lopes da Cruz; ao Luiz Cláudio José Cabral pelo empréstimo do acervo de seu pai Laurito Cabral; ao Edson Lopes dos Santos pelo empréstimo de acervo e ajuda na montagem da exposição; a amiga Vânia Lima Barbosa por todo apoio e colaboração; ao Gustavo Dias pelo empréstimo do acervo; a memória de José Gomes de Matos, Zico que me deu algumas peças; a família do “Pinduca” que também me deu algumas peças; a família de Eros Miguel Conceição pelo apoio e empréstimo do acervo e ao amigo Francisco José dos Santos, por alicates e chaveiros feitos por ele na oficina do “Mitula”. Agradeço também ao José Trindade da Costa pelo empréstimo de peças de seu acervo e a todos que contribuíram para essa pequena amostra da nossa memória recente.

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Texto feito para a exposição "Prata da Casa", de junho a julho de 2018, durante o Festival de Artes e Tradições de Tiradentes.


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