domingo, 10 de março de 2019

As exéquias de Dona Maria I na Matriz de Santo Antônio de Tiradentes - MG



Grandiosa e pomposa foi a cerimônia das exéquias da rainha de Portugal Dona Maria I, a louca, na matriz de Santo Antônio da Vila de São José do Rio das Mortes, atual cidade de Tiradentes. O ato realizado pelo Senado da Câmara parece que teve especial pompa por se tratar da primeira pessoa da família real portuguesa a morrer em solo brasileiro e justamente a pessoa da monarca, que por ironia do destino foi responsável pela condenação de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, à forca e esquartejamento.



Para a cerimônia das exéquias que era constituída por uma missa de réquiem (missa pelos mortos), sermão alusivo ao personagem falecido e ofício de nove lições (ofício de defuntos) e encomendação do túmulo.
Antes da cerimônia cívico-religiosa, o senado da câmara realizava o ato de “quebra escudos”, que se constituía em um ato público, em alguns lugares determinados da via pública, onde os soldados da milícia, ao rufar dos tambores de guerra, literalmente quebravam o escudo d’armas do monarca falecido. Esse costume foi instituído desde a morte de Dom João I, mestre de Avis, perdurando até a morte de Dom Pedro V, em 1861, no território português.

Também ao final das cerimônias internas da igreja, os regimentos de infantaria e cavalaria, postados no adro da igreja matriz procedia a salva de doze tiros, usual em várias cerimônias e ainda hoje usada em enterro de militares.

Para cerimônias de pompa fúnebre de Dona Maria, a louca, a câmara contratou o pintor mulato Manoel Victor de Jesus (1755-1828), autor das pinturas do órgão e sacristias da matriz para idealizar e executar um cadafalso ou mausoléu simbólico que costumeiramente era armado nas igrejas para as exéquias reais e outras de importância. Por exemplo, em 1892 foi armado um mausoléu com “o retrato” de Tiradentes, para a missa de réquiem do centenário de morte do mártir, na mesma igreja.


Capela Mor da Matriz de Tiradentes onde se ergueu o mausoléu para as Exéquias de Dona Maria
Manoel Victor de Jesus concebeu um monumental mausoléu, descrito com detalhes em matéria publicada na Gazeta do Rio de Janeiro, em 06/06/1816.  O cadafalso foi montado no centro da capela mor “rico, soberbo e aparatoso”, com quarenta palmos de altura, ou cerca de oito metros. Era constituído por elemento quadrado em quatro degraus, sendo o último troco piramidal, onde se apoiava uma almofada de veludo preto com franjas de ouro e prata, com um cetro e uma coroa real. Nos ângulos havia quatro colunas “áticas”, remetendo à antiguidade clássica, que eram superiormente fechadas por uma arquitrave ou cornija com seus relevos. Todo o mausoléu era revestido de pano preto, decorado com galões e franjas de ouro e prata. Entre as colunas pendiam festões de pano preto com galões e borlas de ouro. Cobrindo todo o mausoléu havia um baldaquino fixado no florão central do forro da capela mor e dele pendiam cortinas negras que iam se prender nas quatro colunas do retábulo do altar mor, ornadas com franjas e galões de ouro. O mais interessante e que, aliás, era comum nesses mausoléus, era a colocação de quatro esqueletos humanos nos cantos, junto ás colunas, para lembrar a efemeridade da vida, mesmo do monarca. Geralmente o esqueleto era montado com ossos humanos, desenterrados, limpos e caprichosamente unidos. Cada esqueleto trazia nas mãos um lenço em sinal de pranto.



As exéquias barrocas por si só, já tinham grande suntuosidade, e em se tratando de exéquias reais eram sempre cobertas de mais solenidade, onde a arquitetura efêmera era um dos componentes visuais de grande importância, aliás, a música, a sermonística, e aos ritos oficiais.

A cerimônia foi realizada pelo vigário da igreja matriz, que nesta época era o Padre Antônio Xavier de Salles Matos, que ficou na paróquia durante trinta e três anos, coadjuvado por outros tantos sacerdotes e acólitos, usando os paramentos negros, como casula, estola, manípulo e para a encomendação o pluvial negro com seus galões e franjas de prata. Muito incenso e muitos círios davam o clima funebremente místico ao templo dourado.

A literatura acima aludida entrava em cartelas ou tarjas dispostas nos degraus do mausoléu, onde se viam frases latinas em louvor a memória da monarca falecida.
Retrato de Dona Maria I
 Sob os pedestais dos esqueletos estavam fixadas cartelas com sonetos produzidos pelos intelectuais da Vila, obras que infelizmente se perderam nas brumas do tempo e ainda nos lenços dos esqueletos apareciam frases latinas referentes às qualidades da rainha morta.

Além dos sacerdotes e acólitos com seus paramentos negros, o senado da câmara incorporado, assistia a cerimônia vestidos com amplas capas pretas cerimoniais, mas agora do luto oficial, decretado por dois anos, e portando as suas varas, símbolo da dignidade do cargo de vereador. Outras autoridades ocupavam o templo, como meirinhos, tabeliães, porteiros do senado, e toda a milícia uniformizada e incorporada.

Após a missa de réquiem foi proferido o sermão ou “oração fúnebre” com o tema “Mortua est tibi Maria et sepulta in eodens loco” retirado do livro dos Números, capítulo 20, versículo I . O pregador foi padre Manoel Joaquim Ribeiro, professor de filosofia da Vila de São José.

Túmulo de Dona Maria I na Basílica da Estrela em Lisboa
 Por fim a que se citar a música executada na missa e encomendação “composta pelo raro engenho do capitão Manoel dias de Oliveira”(1735-1813). Da missa de réquiem não se conhece a partitura deste compositor de grande renome atualmente, mas a encomendação poderá ter sido a que compôs para a Ordem Terceira do Carmo e que no geral o texto não varia. Há que se pensar que Manoel dias era ainda figura muito viva na memória da Vila, pois havia morrido á três anos. Manoel Dias era um músico que atuava na região,  como mestre de música, tendo com posto várias peças para diversas solenidades religiosas da Vila. Ainda hoje são entoados o seu Miserere na procissão de Passos, os quartetos vocais para a procissão do enterro na sexta-feira santa e o Pange língua na missa de quinta-feira santa.
É pena não nos ter chegado o texto da oração fúnebre e os sonetos em louvor à primeira rainha a morrer em solo brasileiro.
Quanto ao Manoel Victor de Jesus, pintor de grande talento, que deixou na região um conjunto de obras de gosto rococó em várias igrejas: matriz de santo Antônio, igreja Nossa Senhora do Rosário, Igreja Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora da penha de França e matriz do Pilar de São João del Rei. Para o senado da Câmara, além do referido mausoléu, ele havia pintado o teatro, e um retrato de Dom João VI para a sala de sessões, obras hoje perdidas. 
Pintura de Manoel Vitor autor do mausoléu
 Era usual contratar grandes artistas para montar os ricos mausoléus para as exéquias reais e bons exemplos são os erguidos em Lisboa e Roma para as exéquias de Dom João V, e em Minas Gerais o erigido na matriz de São João del rei, em 1750, para o mesmo evento do qual existe um registro em gravura. O mausoléu erguido na matriz do Pilar de Ouro Preto, pela mesma ocasião foi contratado pelo entalhador Francisco Xavier de Brito e incluía as esculturas representando as virtudes.

 



   
Como exemplo da instituição de luto oficial pela morte dos monarcas, transcrevemos um edital da câmara datado de 1781, referente ao falecimento de Dona Mariana Vitória de Bourbon: “ o juiz presidente, etc...Fazemos saber aos que nosso presente edital virem que por haver falecido a fidelíssima senhora rainha mãe, determina a sua majestade aos vassalos deste termo que...de luto os seis meses e porque  nos consta que os mercadores pretendem levantar o preço das fazendas pretas em atenção à precisão de ...para o referido luto, mandamos que todo aquele mercador que alterar o preço das referidas fazendas seja preso na cadeia desta Vila, de on de não sairá sem estar trinta dias e sem que primeiro pague seis oitavas de ouro e as mais despesas. Dado e passado em 23 de maio de 1781”.

(Herculano Veloso- Ligeiras memórias sobre a Vila de São José, Belo Horizonte, imprensa oficial, 1955, pagina 74-75)
Mausoleu erguido na matriz do Pilar de São João Del Rei por ocasião da morte de Dom João V avô da rainha Maria I



Mausoleu erguido na matriz do Pilar por ocasião da morte de Dom João V avô da rainha Maria I

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